quarta-feira, 9 de março de 2011

ALPHONSUS DE GUIMARAENS E A POESIA AGRADÁVEL



 
XXXVII

Ninguém anda com Deus mais do que eu ando,
Ninguém segue os seus passos como sigo.
Não bendigo a ninguém, e nem maldigo:
Tudo é morto num peito miserando.

Vejo o sol, vejo a lua e todo o bando
Das estrelas no olímpico jazigo.
A misteriosa mão de Deus o trigo
Que ela plantou aos poucos vai ceifando.
 
E vão-se as horas em completa calma.
Um dia (já vem longe ou já vem perto?)
Tudo que sofro e que sofri se acalma.
 
Ah se chegasse em breve o dia incerto!
Far-se-á luz dentro em mim, pois a minh’alma
Será trigo de Deus no céu aberto...


Alphonsus de Guimaraens é um dos poetas mais agradáveis da nossa literatura, uma espécie de Casimiro de Abreu vitaminado.
Ser agradável é uma característica notável da nossa poesia. Castro Alves, por exemplo, não abria mão dessa qualidade. A não ser assim, não teria composto um dos mais bem construídos poemas da nossa língua, como “O baile na flor”, que é uma engenhosa aplicação da chamada “arte maior”, ou até “O navio negreiro”. Mesmo quando se indignava com a sorte dos escravos era capaz de compor verdadeiros prodígios da engenharia sonora: “Era um sonho dantesco... o tombadilho/ que das luzernas avermelha o brilho”.
Os poemas tuberculosos e sombrios de Álvares de Azevedo poderiam ser tranqüilamente declamados para uma bela garota no alto do Arpoador(Palor de febre meu semblante cobre). Pensando bem... nem tanto, a não ser que goste de poesia também.  De qualquer maneira, uma boa qualidade dos poetas românticos é que mesmo ao desejarem guilhotinar o próximo para salvar a humanidade não deixavam de dedicar aos seus versos o mesmo cuidado do “ourives” de que fala Bilac.
E Vinícius de Moraes? É inegável a graciosidade e a plasticidade de “Eu te peço perdão por te amar de repente” ou a genial resolução imagético sonora que é a abertura do demagógico “Um operário em construção”(Era ele que erguia casas/ onde antes só havia chão./ Como um pássaro sem asas/ ele subia com as casas/ que lhe brotavam das mãos). Quanto ao que se segue, é uma constrangedora idealização do operário que parece ter sido escrito por um ricaço com sentimento de culpa que, num gesto extremo de egoísmo, resolve atribuir a si mesmo a responsabilidade por todos os males do mundo. Enfim, uma bobagem com método.
Não esqueçamos do meu luso-conterrâneo Gregório de Matos, que num dos poemas mais insultuosos da nossa língua, compôs esta bem arquitetada gradação verbal: “Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha”, e no mesmo poema, algo como um arremate a um insulto que aciona o piloto automático do Ministério da Igualdade(ou da Exclusividade, sei lá) Racial, legou à nossa literatura um verso que outros grandes poetas adorariam ter feito: “posta nas palmas toda a picardia.” Isso, sim, que é insultar com harmonia no coração!
Voltando ao bardo mineiro, o soneto XXXVII faz parte de um de seus livros póstumos que só vieram à luz em 1938, numa edição de poesias completas organizada e revista por Manuel Bandeira, e publicada pelo antigo Ministério da Educação e Saúde e responsável pela volta de uma forte reação alérgica de que ora sofro. O poeta tinha morrido em 1921.  
Não se demora a notar a simplicidade e a graça do velho cancioneiro português(Nam vos sirvo nem vos amo/ mas desejo vos amar,/ de sempre vossa me chamo/ sem quem nam é repousar. D. Philipa de Lencastre, “Ao bom Jesus” sec. XV)); também algum acento camoniano, ainda que não apresente algumas ginásticas verbais que, vez ou outra, o bardo português usava sem comprometer a leveza dos seus versos(Que um contino imaginar/naquilo que amor ordena,/é pena que, enfim, por pena/se não pode declarar).
Sua correção rítmica e acentual, com umas poucas variações que só ocorrem quando realmente necessárias, é análoga à correção dos cânticos litúrgicos em comparação às composições religiosas polifônicas que, por mais intenções religiosas tenham, não servem ao propósito da missa, mesmo que seja uma missa de Bach.
O primeiro quarteto é composto de versos cuja melodia retilínea está bem de acordo com seu caráter bastante assertivo: “ninguém anda...”, “ninguém segue”; “não bendigo... “tudo é morto...” Essa retilinearidade também se harmoniza com uma linguagem prosaica e um fraseado agradavelmente limpo. A linguagem dos três primeiros versos certamente já foi, é e será usada por vários devotos espalhados pelo mundo, exceto pelo fato de que a não estruturam numa moldura sonora que faça alguém perceber uma imagem definida que só pode ser percebida, por sua vez, pelos ouvidos: o primeiro quarteto é totalmente reiterativo, tem as mesmas acentuações(3, 6, 10), o que facilita bastante a percepção de uma sonoridade uniforme.
No mesmo quarteto duas idéias diversas se manifestam, apesar das fortes reiterações: os dois primeiros versos permitem perceber o orgulho devocional, e os dois restantes parecem dizer que alguma coisa está errada, a saber,  indiferença no terceiro e uma triste constatação no quarto. Afinal, como pode ser “miserando”  “um peito” que “anda” com Deus ou O “segue” praticamente o tempo todo?
O verso que abre o quarteto seguinte – um dos mais bonitos de todo poema, uma espécie de chave de ouro sem a sua natureza conclusiva – permanece, praticamente, com a mesma acentuação dos anteriores. Por outro lado, a reiteração rítmica se acumula numa única linha lhe proporcionando mais variedade sonora  (vejo o sol, vejo a lua e todo o bando ), como se estivesse reproduzindo três paradas ou pausas que são necessárias para visualizar três objetos por vez em razão da distância temporal: durante o dia vê-se o sol, primeira pausa;  ao final da tarde, a lua, segunda pausa; e no auge da noite o “bando” que o sexto verso nos informa ser o de “estrelas” no deslumbrante “olímpico jazigo”. Verso esse a partir do qual uma linguagem mais sublime ou mais relacionada ao mistério começa a aparecer.
Os sétimo e oitavo versos, seguindo o padrão de escola, usam de certo acento bíblico para ilustrar a mortalidade(A misteriosa mão de Deus o trigo/Que ela plantou aos poucos vai ceifando.) e que recordam de algum modo o igualmente delicado “rosas,/ que em o dia que nascem/ em esse dia morrem”, de Ricardo Reis.
Apesar do dramático “ceifando”, a mortalidade não é ainda o problema. Pelo contrário, estaria longe de o ser. É um privilégio. Vejamos. Os tercetos resgatam a linguagem mais aproximativa do primeiro quarteto. Se o esquema de rimas já era simples, no primeiro terceto simplifica mais ainda ao rimar um adjetivo com sua versão verbal(calma/acalma.) que lembram, posto que vagamente –  porém mais engenhoso –  o “é pena que, enfim, por pena” camoniano. Aqui a constatação, ao menos indiferente na aparência,  da mortalidade(um dia.../ Tudo que sofro e que sofri se acalma.) e a expectativa ansiosa da morte((... já vem longe ou já vem perto?)) se misturam, conferindo ao terceto um belo efeito emocional, como o constatamos nos poemas do já citado Ricardo Reis, nos quais um drama intenso se expressa em versos calmos, de sentimento estóico. Acontece que essa ansiedade não se explica pelo medo, mas pelo desejo de que o dia definitivo chegue o mais rápido possível, como se houvesse a certeza de que esta vida, por melhor e mais aprazível que seja, não é nada se comparado ao que de fato realmente nos espera:

Ah se chegasse em breve o dia incerto!
Far-se-á luz dentro em mim, pois a minh’alma
Será trigo de Deus no céu aberto...

Eis, pois, um terceto que encerra o poema de forma reconfortante, com uma criativa imagem agrícola(... minh’alma/ será trigo de Deus no céu aberto...) aplicada aos corpos celestes, e que consegue nos aliviar da angústia do fim perceptível naquela charmosa dicção aristocrático-pagã dos também mui delicados poemas de Ricardo Reis.