quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

POEMA DE LOS DONES, de Jorge Luis Borges




Nadie rebaje a lágrima o reproche
esta declaración de la maestría
de Dios, que con magnífica ironía
me dio a la vez los libros y la noche.

De esta ciudad de libros hizo dueños
a unos ojos sin luz, que sólo pueden
leer en las bibliotecas de los sueños
los insensatos párrafos que ceden

las albas a su afán. En vano el día
les prodiga sus libros infinitos,
arduos como los arduos manuscritos
que perecieron en Alejandría.

De hambre y de sed (narra una historia griega)
muere un rey entre fuentes y jardines;
yo fatigo sin rumbo los confines
de esta alta y honda biblioteca ciega.

Enciclopedias, atlas, el Oriente
y el Occidente, siglos, dinastías,
símbolos, cosmos y cosmogonías
brindan los muros, pero inútilmente.

Lento en mi sombra, la penumbra hueca
exploro con el báculo indeciso,
yo, que me figuraba el Paraíso
bajo la especie de una biblioteca.

Algo, que ciertamente no se nombra
con la palabra azar, rige estas cosas;
otro ya recibió en otras borrosas
tardes los muchos libros y la sombra.

Al errar por las lentas galerías
suelo sentir con vago horror sagrado
que soy el otro, el muerto, que habrá dado
los mismos pasos en los mismos días.

¿Cuál de los dos escribe este poema
de un yo plural y de una sola sombra?
¿Qué importa la palabra que me nombra
si es indiviso y uno el anatema?

Groussac o Borges, miro este querido
mundo que se deforma y que se apaga
en una pálida ceniza vaga
que se parece al sueño y al olvido.





Os contos de Jorge Luis Borges são os mais impressionantes da literatura. Na verdade, acabo dizendo isso a respeito de tudo de que gosto. (Os contos de Relíquias da casa velha de Machado de Assis são... Os contos de Murilo Rubião são... Os..) Porém, quando me deparo com sua poesia, acabo cometendo o mesmo excesso. (A poesia de Jorge Luis Borges é...) De qualquer maneira, minha preferência é pela poesia, mesmo quando os contos em questão são os que fazem parte do volume Ficciones ou quando se trata de “There are more things” de El libro de arena, dedicado a Lovecraft, e que é um dos melhores contos de terror que já li.
Nessa narrativa, ao invés de se descrever em detalhes a aparência horrenda e sobrenatural do dono de um solar misterioso, essa é sugerida pela menção ao formato inusitado das mobílias(Ninguna de las formas insensatas que esa noche me deparó correspondía a la figura humana o a un uso concebible.). Até mesmo o formato convencional de partes da casa parece agravar, pelo contraste, as especulações sobre essa mesma aparência. (Esa escalera, que postulaba manos y pies, era comprensible y de algún modo me alivió.) Ademais, o parágrafo final emula o igualmente assustador “Garra do macaco” de J. J. Jacobs.
Diria também que seus contos apresentam uma propriedade da poesia que muito admiro: sensação de simultaneidade. Elementos de várias naturezas, diferentes cenários, teorias ocultistas, teológicas, filosóficas e toda sorte de diversões intelectuais que ocupam o espírito de detetives se desenvolvem lado a lado com alguma trama e toda essa maravilhosa barafunda se prolonga na sua obra poética, como podemos notar em “Ajedrez”, um soneto que trata da predestinação,  e que figura no livro El hacedor(1960)  e do qual também faz parte “Poema de los dones”, acima estampado, e que deve ser um dos poemas mais sentimentais(no bom sentido) a compor o volume. É algo como uma versão “cabeça” de “Meus oito anos” de Cassimiro de Abreu ou “A canção de exílio” de Gonçalves Dias, mas dentro da qual(perdoai-me o abuso da liberdade anatômica) “também bate um coração”. E bate mesmo.
Esse poema tem algo de narrativa. Visualizamos alguém percorrendo uma biblioteca, tateando esse espaço, caminhando com a mesma lentidão e hesitação da música dessas engenhosas quadras. Vamos a alguns exemplos.
Na abertura da segunda estrofe, “i” de libros se prolonga no verbo seguinte(hizo), ou arrasta-se até ele; ou ainda, uma longa caminhada e o roçar as inúmeras lombadas são bem ilustrados pelos nove substantivos que regem um único verbo(brindan) que só aparece no verso final. (É uma estrofe, aliás, ilustrativa e que diz todo o poema. A única coisa que resta ao cego-narrador é apalpar as lombadas e imaginar o que guarda cada uma delas e listar mentalmente os assuntos aos quais não pode mais retornar senão pela memória: “...unos ojos sin luz, que sólo pueden/ leer en las bibliotecas de los sueños/ los insensatos párrafos...”. Por isso, nenhuma teoria por trás desses assuntos é desenvolvida ou discutida em todo o poema. Há apenas uma listagem.) “Lento en mi sombra, la penumbra hueca” é também um belo exemplo de verso imitativo: o intervalo quaternário, mais a pausa natural, aumentam a distância entre as assonâncias. (“sombra” e “penumbra”) Uma fileira de vogais ou de sons vocálicos têm um papel muito importante na quarta estrofe e parecem se prolongar indefinidamente, conferindo ao ambiente uma sensação de amplitude comumente intensificada pela própria cegueira ou por um lugar escuro: “de esta ALta y HONda biblioteca ciega.” Essa sensação de amplitude espacial é também o efeito causado pela abertura da penúltima estrofe, mas dessa vez pelo recurso à antropomorfização(lentas galerias), também presente no verso citado anteriormente(biblioteca ciega).
Nesse poema, por fim, não há um abismo entre o mundo intelectual e a vida propriamente dita. (Como se isso tivesse existido em algum momento!) Pelo contrário, são dois elementos que se confundem a tal ponto que sempre pareceram identificar-se um ao outro. Mais ainda, o que é normalmente visto como mero cerebralismo é justamente o que mais reforça a natureza emotiva do poema e faz com que nos identifiquemos com aquela situação narrada. A enumeração enciclopédica da quinta estrofe, por exemplo, explicita de forma eloqüente uma privação que é também ilustrada pelo recurso ao mito de Midas, recordado em versos tão arrebatadores quanto o melhor poema de amor ou uma elegia: “De hambre y de sed (narra una historia griega)/ muere un rey entre fuentes y jardines”.  Esses versos, cuja música é tão suave aos ouvidos e tem a qualidade do melhor adágio, jamais poderia sair da cabeça de um Dr. Spock argentino.