terça-feira, 31 de outubro de 2023

Realidade virtual em ÀS AVESSAS, de Joris-Karl Huysmans

O trecho abaixo do romance Às avessas, de Joris-Karl Hyusmans, publicado em 1882 é sem dúvida uma antecipação do que se chama hoje de realidade virtual, da inteligência artificial, enfim de uma série de artifícios tecnológicos pelos quais o homem substitui a realidade pela sua contrafação. Como diria o Eclesiastes, nada de novo sob o sol. Isso, por sinal, não é uma coincidência, não tenho por que duvidar que muitas ideias a serviço da tecnologia têm a literatura como fonte.

Às vezes, de tarde, quando por acaso estava desperto e de pé, Des Esseintes, mandava acionar o jogo de canos e condutores que esvaziavam  o aquário e o tornavam a encher de água pura, e ali deitar gotas  de essências coloridas, propiciando-se assim, a seu gosto, os tons verdes ou salobros, opalinos ou prateados, que têm os rios de verdade, de conformidade com a cor do céu, o ardor mais ou menos vivo do sol, as ameaças mais ou menos acentuadas de chuva; de conformidade, numa palavra, com as condições da estação e da atmosfera.

Imaginava então achar-se na entreponte de um brigue e contemplava com curiosidade maravilhosos peixes mecânicos, montados como peças de rolojoaria, que passavam diante do vidro da escotilha e se embaraçavam em falsas ervas; ou então, aspirando o aroma de alcatrão que era insuflado no aposento antes de ele ali entrar, examinava, dependuradas à parede, gravuras coloridas representando, como nas agências de paquetes ou do Lloyd, barcos a vapor  em rota para Valparaíso e La Plata, e tabelas enquadradas nas quais estavam assinalados os itinerários da linha do Royal Mail Steam Packet, das companhias Lopez e Valéry, os fretes e as escalas de serviços postais do Atlântico.

Depois, quando se cansara de consultar esses indicadores, descansava a vista olhando os cronômetros e as bússolas, os sextantes e os compassos, as chúmeas e os mapas espalhados por sobre uma mesa acima da qual se elevava um único livro, encadernado em pele de foca, as Aventuras de Gordon Pym, especialmente impresso para ele em papel raiado de pura fibra, escolhido folha por folha, com uma gaivota em filigrana.

Podia divisar, finalmente, varas de pescas, redes curtidas, rolos de velas ruças, uma âncora minúscula de cortiça, pintada de preto, tudo isso amontoado  perto da porta que comunicava com a cozinha por um corredor guarnecido de estofo acolchoado que absorvia, tanto quanto o corredor entre a sala de jantar e o gabinete de trabalho, todos os odores e todos os ruídos.

Ele obtinha assim, sem sair, de casa, as sensações rápidas, quase instantâneas, de uma viagem de longo curso, e esse gosto do deslocamento que só existe, em suma, na recordação, quase nunca no presente, no próprio instante em que se efetua; desfrutava-o plenamente, à vontade, sem fadiga, sem preocupações, naquela cabine cuja desordem rebuscada, cujo arranjo transitório e instalação como que temporária correspondiam assaz exatamente à sua estada passageira ali, ao tempo limitado de suas refeições, e contrastava de maneira absoluta com o seu gabinete de trabalho, numa peça definitiva, arrumada, bem assente, equipada para a firme manutenção de uma existência caseira. 

O movimento lhe parecia, de resto, inútil, e a imaginação podia, no seu entender, facilmente substituir-se à realidade vulgar dos fatos. Reputava ser possível contentar os desejos tidos por mais difíceis de satisfazer na vida normal mediante um ligeiro subterfúgio, uma sofisticação aproximativa do objeto perseguido por eles. Assim é que, de toda evidência, os gastrônomos se deliciam hoje em dia, nos restaurantes renomados pela excelência de suas adegas, bebendo vinhos de marca fabricados com as baixas vinhaças tratadas de acordo com o método do sr. Pasteur. Ora, verdadeiros ou falsos, esses vinhos têm o mesmo aroma, a mesma cor, o mesmo buquê, e, por conseguinte, o prazer que se experimenta degustando tais beberagens alteradas e factícias é absolutamente idênticos àqueles que se experimentaria saboreando o vinho natural e puro, inecontrável mesmo a peso de ouro. 

Transportando este capcioso desvio, esta habilidosa mentira para o mundo do intelecto, ninguém põe em dúvida que se possa, tão facilmente quanto no mundo material, desfrutar delícias quiméricas semelhantes, em tudo e por tudo, às verdadeiras; ninguém põe em dúvida, por exemplo, que uma pessoa possa se entregar a longas explorações, desde o cantinho de sua lareira, auxiliando, se necessário, o espírito renitente ou lento com a leitura sugestiva de uma obra que narre viagens a lugares longínquos; ninguém põe em dúvida, tampouco, que se possa -- sem sair de Paris -- desfrutar a benéfica impressão de um banho de mar: basta ir, de boa-fé, ao banho Vigier, instalado num barco em pleno Sena. 

Lá, mandando-se salgar a água da banheira e acrescentar-lhe, de acordo com a fórmula do Codex, sulfato de sódio, cloridrato de magnésio e de sódio; tirando-se de uma caixa, cuidadosamente cerrada por um passo de de rosca,  um rolo de cordel ou um pedacinho de cabo que se foi procurar especialmente numa dessas grandes cordoarias cujos vastos armazéns e subsolos recendem a odores de maresia e de porto; apirando-se estes perfumes conservados ainda pelo cordel ou pedaço de cabo; consultando-se a fotografia exata do cassino e lendo-se com ardor o guia Joanne que descreve as belezas da praia onde se desejaria estar; deixando-se embalar pelas vagas que se ergue, na banheira, a esteira dos barcos de passeios  ao passarem rente à barcaça dos banhos; escutando-se, por fim, os gemidos do vento engolfado sob os arcos e o ruído surdo dos ônibus que rolam, a dois passos acima de vós, sobre a ponte Royal, a ilusão de mar é inegável, imperiosa, segura.

Tudo está em saber a pessoa arranjar-se, concentrar seu espírito num único ponto, abstrair-se o suficiente para provocar a alucinação e poder substituir a realidade propriamente dita pelo sonho dela.

O artifício parecia outrossim a Des Esseintes a marca distintiva do gênio humano.

Como ele costumava dizer, a natureza já teve a sua vez; cansou definitivamente, pela desgastante uniformidade das suas paisagens e dos seus céus, a paciência atenta dos refinados. No fundo, que chatice de especialista confinado a seu papel; que mesquinharia de lojista apegando-se a determinado artigo com exclusão dos demais; que monótona coleção de prados e árvores, que banal agência de montanhas e mares!

Não existe, aliás, nenhuma de suas invenções reputada tão sutil ou grandiosa que o gênio humano não possa criar; nenhuma floresta de Fontainebleau, nenhum luar  que cenários inundados de jatos elétricos não reproduzem; nenhuma cascata que a hidráulica não imite se nisso se empenhar; nenhum rochedo que o papelão não assimile; nenhuma flor que tafetás ilusórios e delicados papéis pintados não igualem! 

Não há dúvida de que essa sempiterna maçadora esgotou a indulgente admiração dos verdadeiros artistas e é chegado o momento de substituí-la, tanto quanto possível, pelo artifício.  

Penguin-Companhia,  2011, tradução de José Paulo Paes, pp. 86-89

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Assassinato refratado

O trecho abaixo faz parte do livro A sagração da primavera, de Modris Eksteins, na tradução de Igor Barbosa, que aliás deveria ter sido premiada. Bem, resolvi destacá-la pela forma como nos traz à memória um acontecimento de grande vulto no Brasil, em 1929, quando uma mulher, alvo de diversas matérias escritas por Mário Rodrigues acerca do seu desquite, vai à redação para matá-lo e, sendo atendida pelo seu filho Roberto Rodrigues, resolve no ato disparar a arma contra ele mesmo, dando-se assim, ela mesma o disse ao ser presa, por satisfeita.

Calmette atacaria repetidamente ao longo de 1912 e 1913. Quando Auguste Rodin saiu em defesa de Nijinsky, Calmette o repreendeu como um diletante imoral que esbanjava verbas públicas. Em dezembro de 1913, Calmette iniciaria sua última campanha, desta vez um ataque contra Joseph Caillaux, ex-primeiro ministro das finanças no novo governo de Doumergue. Em 16 de março de 1914, Henriette Caillaux, esposa do ministro, pegou um táxi para a redação do Figaro na Rue Drouot, esperou pacientemente por uma hora para ver o editor-chefe, depois entrou com ele em seu escritório particular e esvaziou sua pistola automática nele. Atingido por quatro dos seis tiros disparados, ele morreu naquela noite.

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Lançamento de Rezas, de João Filho, em Salvador, hoje

 



Reza VIII -- João Filho

Pai, aqui estou, imundo como todos.
A sujeira orgulhosa de uma vida.
O refrão dessa vida é choro e choro,
vai subindo de um poço sem saída.

Venho pedir. Não sei pedir, imploro,
pedir como se fosse despedida.
Ensina-me a pedir o que não morre,
e o que morre ser minha medida.

Pai, aqui estou. Repito essas misérias,
precária como incerta é a matéria,
quero chorar por Ti e não por mim.

Que o mundo diminua e cresça a Cruz,
num incêndio minúsculo de luz --
fósforo que fulgura antes do fim!
 

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Livre de atualizações

No dia seguinte partiu Félix para Tijuca, onde tinha uma casa de recreio e refúgio; regressou duas semanas depois. Durante esse tempo nada soube do que ocorrera na cidade: não leu jornais nem abriu cartas de amigos.

A ressurreição, de Machado de Assis, capítulo IV

Invejável esse Félix, embora fosse, como se diz na linguagem jovem de hoje um curtidor(hoje talvez não tão jovem), não era escravo de alguns caprichos das agitações que cercam pessoas de sua personalidade e condição financeira. Como o informa o trecho acima, foi capaz de ir a um lugar aprazível, retirado, longe das baladas da época, e não assistir ao Jornal Nacional nem acompanhar as notícias eternamente fresquinhas da internet nem abrir o whatsapp. E para completar,  não sofria do mal que aflige as  personagens de Houllebecq, que apostam todas as fichas no turismo:

Olhe, os meus dois pólos estão nas Laranjeiras e na Tijuca; nunca passei  desses dois extremos do meu universo. Confesso que é monótono, mas eu acho felicidade nessa mesma monotonia.


domingo, 3 de setembro de 2023

Trecho de "Só que um pouco pior. Resposta a alguns amigos", de Michel Houellebecq

(...) Sobre a peste [Covid 19] tivemos muita coisa, ao longo dos séculos, os escritores sempre se interessaram  pela peste. Mas sobre isto, duvido muito. Para começar, não acredito nem por um segundo em declarações do tipo "nunca mais nada será como dantes". Pelo contrário, tudo ficará exactamente como era. O desenrolar desta epidemia é até notavelmente normal. O Ocidente não é por direito divino, para toda a eternidade, a zona mais rica e desenvolvida do mundo; isso acabou, já há algum tempo, não é propriamente novidade. Se examinarmos até, em detalhe, o que se passa, a França sai-se um pouco melhor do que a Espanha e do que a Itália, mas menos bem do que a Alemanha; também aqui não encontramos propriamente uma grande surpresa.

Pelo contrário, o coronavírus deveria ter, como principal resultado, a aceleração de certas mutações em curso. Desde há alguns anos, o conjunto das evoluções tecnológicas, sejam elas menores (o streaming de vídeo, o pagamento sem contacto) ou maiores (o teletrabalho, as compras pela Internet, as redes sociais), tiveram como principal consequência (ou principal objectivo?) diminuir os contactos materiais, e sobretudo os contactos humanos. A epidemia do coronavírus  oferece uma magnifica razão de ser para esta tendência pesada: a de uma certa absolescência que parece afectar as relações humanas. O que me faz pensar numa comparação luminosa que encontrei num texto anti-PMA [Procriação Medicamente Assistida, nota do tradutor] redigida por um grupo de activistas denominado "Os chimpanzés do futuro"(descobri estas pessoas na Internet; nunca disse que a Internet só tinha inconvenientes). Por isso, vou citá-los: "Dentro em breve, fazer filhos pelos próprios meios, gratuitamente  e ao calhas, parecerá tão incongruente como hoje andar à boleia sem uma plataforma web." A partilha de carros, a partilha de aluguer da casa, esse tipo de coisas, enfim, temos as utopias que merecemos, mas passo bem sem elas.

Será igualmente falso afirmar que redescobrimos o trágico, a morte, a finitude, etc. A tendência desde há meio século, bem descrita por Philippe  Ariès, foi a de dissimular a morte, tanto quanto possível; pois bem, nunca a morte terá sido tão discreta como nas últimas semanas. As pessoas morrem sozinhas nos seus quartos de hospital ou de EHPAD [... equivalentes a casas de repouso ou lares de terceira idade, nota do tradutor], enterram-nas assim que morrem (ou serão cremadas? a cremação está mais conforme ao espírito do tempo), sem chamar ninguém, em segredo. Mortos que partem sem que haja testemunhos disso, as vítimas resumidas a uma unidade nas estatísticas dos mortos diários, a angústia que se espalha pela população à medida que os números totais aumentam, tudo isto tem qualquer coisa de estranhamente abstracto.

Um outro número ganhou importância nestas semanas, o da idade dos doentes. Até quando é suposto reanimá-los e tratá-los? Onde colocar o limite? Nos 70, nos 75, nos 80 anos? Isso depende, aparentemente, da região do mundo onde se vive; mas nunca, em todo caso, foi dito com um tão tranquilo impudor que nem todas as vidas valem o mesmo; que a partir de uma certa idade (70, 75, 80 anos?)), é um pouco como se já estivéssemos mortos.

Todas estas tendências, já o disse, existiam antes do coronavírus; mas manifestaram-se agora com uma maior evidência. Nós não vamos acordar, depois do confinamento, num mundo novo; será o mesmo, só que um pouco pior.

Esta carta foi lida por Augustin Trapenard, aos mícrofones da France Inter, a 4 de Maio de 2020

Tradução de José Mário Silva, Intervenções, Alfaguara, 2021